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Terço constitucional de férias: overruling e a crise de segurança jurídica

Em 31 de agosto de 2020, o Supremo Tribunal Federal (“STF”), por maioria, apreciando o Tema n. 985 da repercussão geral – natureza jurídica do terço constitucional de férias, indenizadas ou gozadas, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal -, proveu parcialmente o recurso extraordinário, vencido o ministro Edson Fachin, e fixou a seguinte tese: “é legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”.

Não obstante a aparente conclusão do julgamento, no que diz respeito ao mérito da controvérsia recursal –o STF poderia, em tese, reapreciar o mérito por ocasião da apreciação dos embargos de declaração -, a Corte pautou o início do julgamento dos embargos de declaração para o dia 26.03.2020, os quais versam, principalmente e não sem razão, sobre a limitação temporal dos efeitos da decisão.

Indispensável rememorar, nesse contexto, que o STF, quando do julgamento do RE n. 593.068 (Tema 163 da repercussão geral), em 2018, entendeu que o adicional de férias dos serviços públicos não era remuneração, tampouco que era pago ou creditado com habitualidade, inviabilizando, por consequência lógica dessa constatação, a incorporação aos proventos de aposentadoria e a sujeição à incidência de contribuições previdenciárias devida ao Regime Próprio de Previdência Social (“RPPS”):

Não incide contribuição previdenciária sobe verba não incorporável aos proventos de aposentadoria do servidor público, tais como terço de férias, serviços extraordinário, adicional noturno e adicional de insalubridade.

O adicional de férias é regulamentado exclusivamente, na seara constitucional, pelo artigo 7º, inciso XVII, da CF. A natureza jurídica atribuída ao terço constitucional de férias devido ao servidor público filiado a RPPS e ao empregado filiado ao RGPS é conferida, portanto, pela mesma norma jurídica constitucional, que lhe confere suporte de validade.

A jurisprudência sobre o tema havia se consolidado a tal ponto que o STJ, no ano de 2011, atribuiu efeito multiplicador ao REsp n 1.230.957, submetendo-o à sistemática dos recursos repetitivos, decidindo que os valores pagos, devidos ou creditados a esse título não se revestia de natureza remuneratória e não se sujeitava, portanto, à incidência de contribuições previdenciárias.

Como se não bastasse o consenso jurisprudencial no STF e no STJ, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”) – órgão colegiado integrante da estrutura do Ministério da Economia -, por força o disposto no artigo 62, §2º(1), de seu Regimento Interno, passou a reproduzir, em diversos julgados(2), o entendimento firmado pelo STJ.

Nesse sentido, o §3º do artigo 927 do CPC determina que, em caso de alteração jurisprudencial dominante do STF e dos tribunais superiores, os efeitos da decisão poderão ser modulados, no interesse social e da segurança jurídica:

Art. 927. […]

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

É inegável que houve, na espécie, uma drástica ruptura de paradigma (overrruling), inclusive no entendimento constantemente aplicado pela própria Administração, a ensejar a inevitável modulação dos efeitos da decisão. Como bem salientou o eminente Ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento do ARE 652469 AgR/PA:

Cumpre relembrar, por oportuno, que esta Suprema Corte, tendo em vista as múltiplas funções inerentes à jurisprudência – tais como a de conferir previsibilidade às futuras decisões judiciais nas matérias por elas abrangidas, a de atribuir estabilidade às relações jurídicas constituídas sob a sua égide, a de gerar certeza quanto à validade dos efeitos decorrentes de atos praticados de acordo com esses mesmos precedentes e a de preservar, assim, em respeito à ética do Direito, a confiança dos cidadãos nas ações do Estado -, tem reconhecido a possibilidade, mesmo em temas de índole constitucional (RE 197.917/SP, Rel. Min. Maurício Corrêa), de determinar, nas hipóteses de revisão substancial da jurisprudência derivada da ruptura de paradigma, a não incidência sobre situações previamente consolidadas, dos novos critérios que venham a ser consagrados pelo Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, considera-se overruling a mudança de entendimento de um tribunal acerca de tema jurídico anteriormente pacificado, de modo que ausência de modulação de efeitos(retroactiveapplication) resultaria em grave e irreparável dano aos postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, que atingem inclusive as relações jurídicas de direito público e qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado, para que se preservem situações já consolidadas no passado.

Esquadrinhado esse cenário, parece-nos que não há alternativa hermenêutica se não o acolhimento dos embargos de declaração, de forma que sejam modulados os efeitos da decisão (prospective overruling) como única e derradeira salvaguarda ao jurisdicionado e ao primado da segurança jurídica.

Por Leandro Lamussi.

(1) Art. 62. Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF. (Redação dada pela Portaria MF nº 152, de 2016)
(2) Assunto: Contribuições Sociais Previdenciárias. Período de apuração: 01/10/2015 a 31/12/2016. CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS À SEGURIDADE SOCIAL. TERÇO CONSTITUCIONAL DE FÉRIAS GOZADAS. AVISO PRÉVIO INDENIZADO. IMPORTÂNCIA PAGA NOS QUINZE DIAS QUE ANTECEDEM O AUXÍLIO-DOENÇA. NÃO INCIDÊNCIA. RECURSO PROVIDO.
Não incidem contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias gozadas, sobre o aviso prévio indenizado e sobre a importância paga nos quinze dias que antecedem o auxílio-doença. Precedente do STJ, em sede de recurso repetitivo (REsp 1230957/RS).
CONTRIBUIÇÕES DEVIDAS À SEGURIDADE SOCIAL. HORAS EXTRAS. GRATIFICAÇÕES E ADICIONAL POR TEMPO DE SERVIÇO. INCIDÊNCIA.1. As horas extras e seu respectivo adicional constituem verbas de natureza remuneratória, razão pela qual se sujeitam à incidência de contribuição previdenciária. Precedente do STJ, em sede de recurso repetitivo (REsp 1358281/SP).
2 – As gratificações e o adicional por tempo de serviço, pagos de forma habitual, integram a base de cálculo das contribuições.

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