A pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, exigiu uma repentina e severa alteração na dinâmica da sociedade. O distanciamento social, reconhecido com uma das medidas mais eficazes e importantes para conter o avanço da doença, transformou irremediavelmente o mundo do trabalho, esvaziando fisicamente milhões de postos em todos os setores da economia.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que somente no ano de 2020 mais de 7,9 milhões de pessoas estiveram em trabalho remoto no Brasil. No mês de maio de 2020, por exemplo, quando houve o primeiro pico, a quantidade de pessoas ocupadas em trabalho remoto foi de 8,7 milhões, o que representou 13,3% das pessoas ocupadas no Brasil, um total de 84,4 milhões de trabalhadores.
De acordo com a nota técnica “Potencial de Teletrabalho na pandemia: um retrato no Brasil e no mundo”, o Brasil, pelas características de seu mercado de trabalho, possui, na média, um percentual de pessoas em potencial de teletrabalho de cerca de 22,7%, que corresponde a 20,8 milhões de pessoas. A necessidade de adaptação à essa nova e implacável realidade laboral impôs desafios inéditos às empresas, aos stakeholders - tais como jurídico, recursos humanos, financeiro, saúde, segurança e higiene do trabalho, entre outros – e aos trabalhadores em geral, sobretudo em razão de a legislação trabalhista, ainda incipiente quanto ao regramento do tema, não dispor sobre diversos aspectos que envolvem o teletrabalho e, mais especificamente, o home office.
Neste mês de abril, em que se celebra o “Dia Mundial em Memória das Vítimas de Acidentes e Doenças do Trabalho”, no dia 28, e o “Dia Mundial da Saúde”, criado pela OMS e comemorado no dia 7, é especialmente oportuna a reflexão em torno da preservação da saúde do trabalhador e da prevenção de acidentes e doenças do trabalho no home office.
Carente de uma legislação específica envolvendo os deveres dos empregadores e os direitos subjetivos dos empregados mantidos em home office, a jurisprudência deverá se orientar no sentido de que a preservação da saúde do trabalhador, em sua acepção mais genérica e abrangente, é responsabilidade do empregador, ao qual compete adotar as precauções a fim de evitar doenças e acidentes do trabalho no regime de home office. O empregador, por sua vez, deve solicitar que o empregado assine termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas.
Considerando que o contrato de trabalho deve prever de quem será a responsabilidade de prover os equipamentos necessários ao teletrabalho – se providos pelo empregador, esses equipamentos cedidos não podem ser considerados remuneração -, e, além disso, que não há nesse regime uma supervisão direta por parte da chefia, o Ministério Público do Trabalho editou a Nota Técnica 17/2020, por meio da qual indicou as diretrizes a serem observadas nas relações de trabalho por empresas, sindicatos e órgãos da administração pública, a fim de garantir a proteção dos trabalhadores no trabalho remoto ou home office, entre as quais:
- “O teletrabalho deve ser exercido em condições de qualidade de vida e de saúde do trabalhador, abrangendo não só a ausência de afecção ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene do trabalho”;
- “O teletrabalho exige necessariamente adaptação e treinamento (principal e complementar necessário), incluindo treinamento mínimo para o teletrabalho para fins de qualificação e motivação das pessoas, de forma a que sejam atingidos níveis adequados de segurança e higiene”;
- “Observar os parâmetros da ergonomia, seja quanto às condições físicas ou cognitivas de trabalho (por exemplo, mobiliário e equipamentos de trabalho, postura física, conexão à rede, design das plataformas de trabalho online), quanto à organização do trabalho (o conteúdo das tarefas, as exigências de tempo, ritme da atividade), e quanto às relações interpessoais no ambiente de trabalho (formatação de reuniões, transmissão de tarefas a ser executadas, feedback dos trabalhos executados), oferecendo ou reembolsando os bens necessários ao atendimento dos referidos parâmetros, nos termos da lei, bem como limitações, procedimentos e determinações dos Órgão de Controle, tais como Tribunal de Contas no caso da Administração Pública”.
Sem embargo de o ato administrativo do Ministério Público ser desprovido de caráter impositivo, ostenta evidente força política, prestando-se como clara advertência aos destinatários, conforme observou Gustavo Milaré Almeida: “Não obstante, impende ressaltar que as recomendações, (assim como as audiências públicas) não são auto executórias ou coercitivas, não obrigando diretamente o destinatário ao cumprimento do seu conteúdo, mas tão somente a sua resposta, muito embora, como já mencionado, sirva de clara advertência sobre as consequências jurídicas que poderão advir do seu desatendimento”.
Neste contexto, não há dúvida de que competirá aos empregadores, senão a rigorosa implementação das medidas definidas pelo Ministério Público do Trabalho, ao menos a demonstração, de forma inequívoca, que envidaram os melhores esforços no sentido de preservar a saúde física e psíquica dos empregados que executam home office, agindo ativamente, por meio de investimento em recursos técnicos, financeiros e humanos, com o objetivo de evitarem a ocorrência de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais.
O adequado endereçamento do tema é pauta inadiável, cujo enfrentamento não apenas visa inibir futuras e potenciais condenações na seara da Justiça do Trabalho, mas também – e mais importante -, garante a efetiva salvaguarda do preceptivo constitucional contido no artigo 7º, inciso XXII, que determina a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.
Leandro Lamussi, sócio do Barreto, Lamussi, Nunes Advogados. Artigo publicado pela Análise Editorial