Leandro Lamussi. Artigo publicado pelo JOTA
O Doing Business 2020 (DB 2020), uma das principais publicações do Banco Mundial, é a 17ª edição de um estudo anual que mede como as leis e regulamentações promovem ou restringem as atividades empresariais. O estudo apresenta indicadores quantitativos sobre a regulamentação dos negócios e a proteção dos direitos de propriedade, que podem ser comparados, ao longo do tempo, nas 190 economias avaliadas – do Afeganistão ao Zimbábue.
À época do estudo inicial, em 2012, o Brasil ocupava a 126ª posição entre 183 países. No item “pagamento de impostos”, o Brasil era 150ª colocado. No DB 2020, a posição do Brasil no ranking melhorou para a 124ª colocação entre 190 países, contudo, no quesito “pagamento de impostos”, houve um substancial retrocesso, caindo para a 184ª posição.
Às categorias pesquisadas em 2012 para o quesito “pagamentos de impostos” – inclui dados sobre “número de pagamentos”, “número de horas gastas” e “peso da tributação total em relação aos lucros”, subdividido em “impostos sobre o rendimento corporativo”, “contribuições sociais e impostos sobre o trabalho” e “outros impostos” – foi acrescido o “índice de pós-declaração” (postfiling), composto por quatro componentes de avaliação:
§ Tempo para cumprir com as obrigações relativas a uma restituição do imposto sobre o valor agregado (IVA) ou do imposto sobre bens e serviços;
§ Tempo para obter uma restituição do IVA ou do imposto sobre bens e serviços;
§ Tempo para cumprir com as obrigações relativas a uma retificação do imposto sobre o rendimento corporativo (IRPJ); e
§ Tempo para concluir um processo de retificação do IRPJ.
Segundo apontado no estudo técnico “Custo do Cumprimento das Obrigações Tributárias Acessórias no Brasil” (2019), elaborado por Murilo Rodrigues da Cunha Soares, da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, o postfiling varia entre 0-100 e quanto mais alto, melhor a posição do país avaliado. O Brasil obteve pontuação de 7,8 no BD 2020, que, excluídas as marcas de sete países sem nota ou com nota zero, foi a 3ª pior da lista.
As conclusões do Banco Mundial convergem com as informações divulgadas pela consultoria Stefanini, multinacional de tecnologia, segundo a qual 1 em cada 200 trabalhadores no Brasil atua na área contábil. Nos Estados Unidos, a proporção é de 1 para 1000 trabalhadores, enquanto na Europa é 1 para 500.
Não é difícil inferir as razões desta lamentável realidade: em 2020, a carga tributária bruta (CTB) do governo geral (governo central, estados e municípios) foi de 31,64% do PIB, conforme divulgado no Boletim Estimativa da Carga Tributária Bruta do Governo Federal 2020, elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional. Isso significa, na prática, que os governos consumem mais de 30% da riqueza produzida no país.
Como se não bastasse a sanha arrecadatória dos entes federativos, os contribuintes se sujeitam a um sistema tributário altamente complexo – quiçá caótico –, composto por aproximadamente 90 tributos vigentes e algumas centenas de obrigações acessórias. Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) indicam que União, estados e municípios já teriam editado 363.779 normas tributárias desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (05/10/1988), sendo que somente 4,13% das regras editadas teriam sofrido mudança.
Este emaranhado de normas tributárias, muitas vezes indecifráveis e contraditórias entre si,induzem os contribuintes a sucessivos erros na apuração, declaração e arrecadação, sobretudo se considerarmos que uma quantidade relevante dos tributos se sujeita ao lançamento por homologação (autolançamento), tais como ICMS, ISS, IPI, IRPJ, ITCMD, PIS, Cofins e contribuições sociais (previdenciárias).
A aridez do ambiente negocial no Brasil é parcialmente explicada pela dificuldade de os contribuintes obterem restituição de tributos indevidamente recolhidos. Afora o BD 2020 ter apontado que as empresas no Brasil gastam até 1.501 horas por ano para cumprir obrigações acessórias, a teratologia do sistema e os erros de aplicação das normas tributárias impactam o “índice pós-declaração (postfiling)”, que avalia o esforço para se obter ressarcimentos. Neste quesito, como visto, o Brasil é o 3º pior da lista dos 190 países, excluídos apenas aqueles que não obtiveram nota ou com nota zero.
Postfiling e repetição de indébito
A desanimadora constatação do Banco Mundial sobre a realidade tributária brasileira, mormente o postfiling, é causa implacável de outro grave problema: o crescente contencioso tributário no país. Dados levantados para o Brasil em 2018 e divulgados no estudo “Contencioso tributário no Brasil. Relatório 2019 – Ano de Referência 2018”, do Núcleo de Tributação do Insper, mostram um montante em discussão, nas vias judicial e administrativa, de R$ 4,981 bilhões, que representou 73% do PIB daquele ano.
Com efeito, se considerarmos que o tempo médio de duração de um processo na Justiça Federal de 1º grau é de 5 anos e 4 meses e no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), por exemplo, de 7 anos e 5 meses– conforme relatório “Justiça em Números 2020: ano-base 2019, do Conselho Nacional de Justiça –, excluído o tempo de duração da eventual discussão da controvérsia na esfera administrativa, já seriam 12 anos e 9 meses de tramitação.
Se considerarmos, outrossim, que é legítima a restituição de tributos indevidamente recolhidos a partir do quinquênio que antecedeu a propositura da respectiva ação judicial, é forçoso reconhecer que o ressarcimento de tributos federais, em razão de decisão judicial transitada em julgado, deve compreender um período de aproximadamente 17 anos e 9 meses.
Como nada é tão ruim que não possa piorar, a Receita Federal do Brasil (RFB) impõe aos contribuintes, como condição de procedibilidade da compensação tributária, inclusive nas hipóteses de sentença judicial transitada em julgado, a correção das obrigações acessórias do período a que se referem os créditos.
Pasmem-se: após o contribuinte ter recolhido tributos indevidos, suportado altíssimos custos processuais, enfrentado todos os riscos jurídicos e econômicos decorrentes de uma ação judicial – que, definitivamente, não são poucos – e obtido, após mais de uma década e o esgotamento dos infindáveis recursos, o trânsito em julgado da decisão favorável, a RFB condiciona o direito a compensação à retificação das obrigações acessórias, isto é, das declarações transmitidas durante os mesmos 17 anos a que se refere o indébito.
É o que se extrai, por exemplo, da Solução de Consulta n. 10.011 – SRRF10/Disit, de 21 de julho de 2020, relacionada à retificação de obrigações acessórias para compensação de contribuições previdenciárias:
Assunto: Normas Gerais de Direito Tributário
CRÉDITO RELATIVO À CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA RECONHECIDO POR SENTENÇA JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO. EXECUÇÃO ADMINISTRATIVA. COMPENSAÇÃO TRIBUTÁRIA. PRÉVIA RETIFICAÇÃO DAS GFIPs VINCULADAS AO CRÉDITO SUJEITO À COMPENSAÇÃO. OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA CONDICIONAL.
Havendo decisão judicial transitada em julgado reconhecendo a inexigibilidade de tributo previdenciário pago, exsurge a faculdade do contribuinte em executar a sentença mediante compensação administrativa perante a RFB, no prazo de cinco anos, contado da data do trânsito em julgado da decisão ou da homologação da desistência da execução do título judicial, devendo, como condição de procedibilidade da compensação, antes cumprir a obrigação acessória de correção da GFIP subjacente ao direito creditório reconhecido judicialmente. (…)
Um incauto leitor poderia supor que a retificação das obrigações acessórias, ainda que relativa ao longo período de duração do processo, acrescido dos 5 anos que antecederam o ajuizamento, não consistiria numa exigência ilegal, irrazoável ou excessivamente onerosa ao contribuinte, na medida em que bastaria informar retroativamente e por competência, os valores devidos nas declarações pretéritas, tais como as GFIPs, e retransmiti-las à autoridade competente.
Não é tão simples, e pode piorar: imaginemos, por exemplo, que um contribuinte tenha ingressado com ação judicial em 2010 objetivando afastar a incidência de contribuições previdenciárias sobre os valores pagos a título de ajuda de custo. Imaginemos, ademais, que o trânsito em julgado da decisão favorável ocorreu em 2021. Nesta hipótese – semelhante àquela exposta na Solução de Consulta –, a RFB condicionaria a repetição do indébito, por meio de compensação, à exclusão da ajuda de custo da base de cálculo das contribuições previdenciárias, por empregado e por competência, para os últimos 16 anos, entre 2005 e 2021.
Para tanto, o contribuinte teria que possuir, necessariamente, as folhas de pagamentos analíticas do período, com indicação de cada empregado beneficiado pela ajuda de custo, além de aproximadamente 200 arquivos das GFIPs íntegros e restauráveis, e contornar os inevitáveis e,às vezes, incontornáveis erros de compatibilidade dos documentos, dadas as constantes atualizações do Sistema Empresa de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (SEFIP).O eSocial, que substituiu a GFIP para a declaração das informações relacionadas à folha de pagamentos, não solucionou essas dificuldades, mas as agravou.
Se o contribuinte restar bem-sucedido nessas etapas preliminares, poderá iniciar o processo de retificação das informações, cuja quantidade de alterações será a razão da multiplicação:“número de pagamentos da ajuda de custo por mês x número de empregados que a receberam em cada mês x 12 meses por ano x quantidade de anos”,o que não raro exige centenas de milhares de alterações.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), ao apreciar a exigência de retificação da GFIP para a compensação do indébito da contribuição previdenciária incidente sobre os subsídios dos exercentes de cargo eletivo, concluiu que “a exigência, prevista na Portaria MPS n. 133/06, tendo como pretenso fundamento o artigo 32, inciso IV, da Lei n. 8.212/91, é ilegítima, porque criou verdadeira obrigação tributária que só poderia ser instituída por lei específica”, sendo que essa decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Não obstante o precedente do STJ representar uma luz no fim do túnel, os deveres instrumentais à arrecadação são demonstrações eloquentes da irracionalidade do sistema tributário brasileiro e da percepção comum, compartilhada por boa parte dos contribuintes, de que existe um ciclo tributário vicioso e perverso que mina o ambiente de negócios, desestimula o empreendedorismo, fulmina os investimentos no país e nos posiciona como verdadeiros páreas no cenário econômico mundial.
LEANDRO LAMUSSI – Advogado. Sócio do Barreto, Lamussi, Nunes Advogados