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O “Plenário Virtual” do STF e a transgressão do debate jurídico

O “Plenário Virtual” do STF e a transgressão do debate jurídico: a enxurrada de teses tributárias julgadas desfavoravelmente aos contribuintes durante a pandemia.

Mauro Simões, advogado do Barreto, Lamussi, Nunes Advogados. Pós-graduado em direito tributário/previdenciário.

A pandemia instaurada pela COVID-19 alterou substancialmente a forma de se operar o Direito no Brasil: o trabalho remoto dos advogados e servidores dos Tribunais, as sessões virtuais para realização de audiências, as sustentações orais e os julgamentos por meio de plataformas eletrônicas de comunicação marcaram o início de uma Nova Era na advocacia pública e privada. Se essa transformação tecnológica representava um anseio histórico comunidade jurídica, no constante esforço de garantir celeridade e eficiência ao Judiciário, também não se pode negar que a nova dinâmica social empreendeu um novo e inesperado ritmo ao progresso tecnológico.

No Supremo Tribunal Federal (STF) não foi diferente. A mais alta Corte de Justiça emplacou de vez o chamado “Plenário Virtual”, sistema que permite o acesso remoto aos autos e até mesmo a votação fora do gabinete, viabilizando o julgamento de um enorme volume de casos pendentes de apreciação. Quando de sua criação, o ambiente virtual se prestava tão somente ao exame, pelos Ministros, acerca da existência de Repercussão Geral em determinada matéria. Atualmente, nada menos que 90% das classes processuais são examinadas neste formato. O site do STF na internet assim define a funcionalidade:

“O Plenário Virtual funciona 24 horas por dia e é possível que os ministros o acessem de forma remota, permitindo a votação mesmo estando fora de seus gabinetes. Entre os principais temas com repercussão geral reconhecida estão as questões eleitorais, criminais e econômicas. Uma reforma no Regimento Interno do STF em junho de 2016 passou a permitir também o julgamento de alguns recursos internos (Agravo Interno e Embargos de Declaração) por meio do Plenário Virtual da Corte.
Além de dar celeridade à análise de temas relevantes, o Plenário Virtual também oferece transparência no acompanhamento das decisões. Até novembro de 2008, apenas os ministros e os tribunais cadastrados tinham acesso ao sistema, mas os ministros do Supremo decidiram ampliar o acesso, permitindo o acompanhamento pela sociedade dos julgamentos sobre existência de repercussão geral. A consulta está disponível no link Plenário Virtual na página do STF e permite acompanhar o voto de cada ministro acerca da existência de repercussão geral em determinado tema.”

De fato, o novo ambiente permitiu a solução definitiva de muitos temas que se arrastavam há anos no STF. Somente durante a pandemia, já foram julgados mais casos do que na somatória total dos 4 (quatro) anos anteriores. No campo do direito tributário, objeto da presente reflexão, já são quase 50 (cinquenta) “teses” julgadas pelo STF desde abril de 2020.

No entanto, se de um lado o avanço tecnológico trouxe inegáveis benefícios à atividade jurisdicional, acelerando o trâmite dos processos e a solução das controvérsias submetidas à Corte, por outro, tem gerado enorme e irreparável prejuízo à essência fundamental do Plenário, e que se traduz na sua razão de “ser” : o debate dos Ministros, entre si e com as partes.

Isso porque na modalidade de julgamento operada pelo “Plenário Virtual”, as peças processuais, o relatório elaborado pelo Ministro Relator, os votos e o resultado proclamado são apresentados de forma otimizada. Não há qualquer interação, seja com os advogados do processo, seja entre os próprios Ministros. Até mesmo as sustentações orais são inseridas por meio de arquivo de áudio/vídeo, previamente gravado pelo advogado da parte:

“Nas hipóteses de cabimento de sustentação oral previstas no regimento interno do Tribunal, fica facultado à Procuradoria-Geral da República, à Advocacia-Geral da União, à Defensoria Pública da União, aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual. O envio dos arquivos de sustentação oral para as sessões virtuais deverá ser feito pelo sistema de Peticionamento, por meio do botão “Quero enviar Sustentação Oral”, que estará disponível aos usuários a partir do dia 01/05/2020”. (Grifou-se)

Ou seja, não há qualquer evidência de que os ministros ou aos menos seus assessores identificaram o arquivo enviado. O debate dinâmico, que seria possível até mesmo nas videoconferências, foi completamente exterminado pelo novo modelo.

Coincidência ou não, fato é que das quase 50 (cinquenta) teses tributárias julgadas neste formato, cerca de 75% foram contrárias ao contribuinte. É importante observar que até mesmo algumas teses já assentadas pelo STJ e inclusive pelo próprio STF – no passado – foram modificadas (overruling), o que representa um grave atentado à segurança jurídica e ao sistema de precedentes.

Exemplo emblemático dessa situação é ilustrado pelo julgamento da tese relacionada ao terço constitucional de férias: a jurisprudência estava consolidada há mais de uma década, inclusive por meio de Recurso Repetitivo, no sentido de que os valores pagos, devidos ou creditados a esse título não configuravam natureza remuneratória e, consequentemente, não estariam sujeitos à incidência de contribuições previdenciárias. Entretanto, em 31.08.2020, o STF, por maioria, proveu parcialmente o RE 1072485 (Tema 985), fixando a tese no sentido de ser “legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”, invertendo completamente o entendimento consolidado sobre o tema.

Por certo não se pretende o debate sobre a convicção dos Ministros, tampouco fomentar teorias, conspiratórias ou não, em torno de eventuais matizes econômicas e políticas das decisões judiciais – a despeito dos argumentos econômicos suscitados à exaustão pela União Federal. O que se coloca em pauta é a aparente relação entre uma causa – a supressão do debate entre os Ministros e com as partes – e um efeito – o número contundente de decisões desfavoráveis aos contribuintes, alterando sensivelmente a estatística observada antes dos julgamentos virtuais.

Ao minar a expectativa de interação e o contraditório dinâmico, o “Plenário Virtual” – que não se confunde com as sessões virtuais de videoconferência – acaba por afrontar até mesmo o devido processo legal: os magistrados sequer se pronunciam acerca dos fundamentos contrários. Falam menos e ouvem menos!

A maioria das teses tributárias são oriundas do intenso e incansável debate processual. A advocacia tributária, combativa por natureza, ocupa o protagonismo da discussão, ao provocar constantemente Judiciário, instando-o a se manifestar. Evidentemente, os magistrados podem discordar das teses propostas, mas têm o dever constitucional de esclarecer as razões para discordância, situação que não se nota na sistemática do “Plenário Virtual”.

Uma avalanche de teses tem seu mérito julgado à baciada, da “noite para o dia”, inclusive, alguns casos com aplicação indiscriminada da modulação de efeitos, causando diversos reflexos e consequências que afrontam o planejamento fiscal do contribuinte.

Neste sentido, vale novamente frisar que automação processual tem trazido inúmeros benefícios ao Judiciário e, consequentemente, à sociedade. Todavia, é importante ponderar um bom equilíbrio entre a aplicação da inovação tecnológica em detrimento do debate jurídico, posto que este jamais pode ser esvaziado, sob pena de se atentar contra o próprio Estado Democrático de Direito.

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