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Julgamento da ADI 4980: crime previdenciário e a decisão definitiva em esfera administrativa

Por Mauro Simões. Artigo publicado no Conjur

Os crimes particulares contra a ordem tributária são aqueles praticados por sujeito – que não seja funcionário público, mediante condutas de supressão e/ou redução de tributos e obrigações acessórias, através de práticas relacionadas à: omissão de informações; prestação de declarações falsas ao Fisco; fraude a fiscalizações; alteração, falsificação, omissão ou negativa de notas fiscais, faturas, duplicatas, além de demais documentos e obrigações acessórias correlatas:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Com efeito, a Fazenda Pública se incumbe de informar o Ministério Público quanto ao potencial delito, para fins de instauração de inquérito policial pelos respectivos delegados, visando a apuração dos crimes tributários previstos na legislação.

Neste contexto, surge a figura da “Representação Fiscal para Fins Penais” (RFFP), que basicamente se traduz no instrumento de comunicação entre a Fazenda e o MP, acerca da constatação de indícios de crime, seja decorrente do término do processo administrativo, ou quando constatado que o sujeito passivo da obrigação tributária não recolheu aos cofres públicos os valores devidos dentro do prazo legal.

O artigo 83 da Lei n. 9.430/96 (redação dada pela Lei n. 12.350/10), por sua vez, sempre dispôs que a “representação fiscal para fins penais” referente aos crimes contra a ordem tributária e contra a Previdência Social (apropriação indébita e sonegação de contribuição previdenciária) deverá ser remetida ao Ministério Público somente após decisão final na esfera administrativa acerca da exigência fiscal de determinado crédito tributário, senão vejamos:

“Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.”
(Grifou-se)

Isso porque, evidentemente, antes do desfecho do procedimento administrativo fiscal, não há o valor definitivo do tributo que teria sido supostamente sonegado, omitido ou indevidamente apropriado. Ademais, eventual valor inclusive poderá ser revisto e até mesmo (integralmente) anulado durante o julgamento de recursos administrativos, o que afastaria completamente o prosseguimento da persecução penal.

Acerca disso, vale registrar o entendimento da Doutrina :

“Segundo Juary Silva, a configuração da infração tributária na esfera administrativa é questão prejudicial para a caracterização do crime tributário, de modo que o encerramento do processo administrativo-fiscal configura-se como condição de procedibilidade da ação penal.
Nas palavras do autor “afigura-se que o órgão do Ministério Público, como dominius litis da ação penal, não deve oferecer denúncia antes de preenchida essa condição de procedibilidade, porém caso o tenha feito, deverá suscitar a questão da prejudicialidade, logo que a detecte nos autos, a sim de evitar possível desperdício da atividade jurisdicional.
Quanto ao juiz, não há dúvidas que lhe incumbe, ainda que ninguém requeira, determinar o sobrestamento do feito, ante a ocorrência de prejudicialidade.”
(Grifou-se)

Contudo, em que pese tais premissas expostas acima, a Procuradoria Geral da República (PGR) propôs, em 2013, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.980, por meio da qual objetivava o reconhecimento, perante o STF, da inconstitucionalidade do mencionado artigo 83 da Lei 9.430/1996, no que se refere aos crimes formais, especialmente a denominada “apropriação indébita previdenciária”.

Ademais, formulou ainda pedido subsidiário para declarar que tais crimes formais, consumam-se independentemente de exaurimento de processo administrativo.

O argumento utilizado em favor do Fisco residia, principalmente, na ideia de que a restrição da ciência absoluta dos fatos por parte do MP, encaminhada somente após o encerramento da discussão administrativa, sobretudo após o julgamento dos recursos interpostos perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), resultava em “impunidade” para casos concretos de ocorrência dos delitos tipificados.

Sustentou ainda a PGR, em sua manifestação nos autos da ADI 4.980, que “a declaração de inconstitucionalidade do art. 83 da Lei 9.430/1996, no que respeita aos crimes tributários formais permitirá atuação tempestiva do Ministério Público, a fim de promover responsabilização penal dos infratores e contribuir para recolhimento dos valores sonegados aos cofres públicos”.

Ocorre que o referido argumento vai de encontro com premissas extremamente consolidadas e princípios próprios dos regimes jurídicos penal e tributário brasileiros, que objetivam assegurar garantias constitucionais.

No que se refere à seara penal, há nítida afronta ao artigo 41 do Código de Processo Penal, tendo em vista que Ministério Público não possuiria, até a definição da esfera administrativa, todas as circunstâncias do fato criminoso e, por consequência, o Juízo não teria a capacidade de definir se eventual denúncia oferecida pela acusação preencheria todos os requisitos e se seria possível recebê-la, constituindo-se em seguida a ação penal correspondente.
Do ponto de vista tributário, por sua vez, vale ressaltar que o provimento a tal medida importaria assumir conclusivamente que o crédito tributário seria exigível antes mesmo do encerramento da esfera administrativa, o que colidiria até mesmo com o conceito da constituição definitiva abarcada pela Doutrina majoritária, o que jamais poderia ser considerado, posto que tal interpretação abriria brecha para inúmeras divergências na esfera tributária.

Nada obstante, conforme consta do regime jurídico, bem assim já consolidado na jurisprudência pátria: “a quitação do débito extingue a punibilidade a qualquer tempo”.

Logo, resta nítido que, dado o teor das manifestações da PGR, o real objetivo do Fisco com a permissão da persecução penal anteriormente ao desfecho da esfera administrativa, seria simplesmente pressionar o contribuinte a realizar a quitação imediata de qualquer débito em aberto desta natureza que surgisse, suprimindo a possibilidade de discussão/anulação perante a esfera administrativa e, obrigando-o a pleitear eventual restituição tão somente após a quitação, convalidando o famigerado instituto (negativo) do solve et repet.

Para solucionar a questão, em 10.03.2022, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, finalmente julgou improcedente a supracitada ADI n. 4.980 proposta pela PGR, declarando efetivamente constitucional o art. 83 da Lei nº 9.430/1996, com redação dada pela Lei nº 12.350/2010, em favor dos contribuintes.

Segundo se depreende do voto do Relator do caso, Ministro Nunes Marques, foi assimilada a razoabilidade de se aguardar a conclusão do procedimento administrativo antes do encaminhamento da representação para fins penais. A medida, a seu ver, “privilegia o exercício da ampla defesa e do contraditório no campo fiscal e indica prudência no tratamento penal da questão, evitando o acionamento indevido da persecução criminal por fato pendente de decisão final administrativa”.

É importante ainda citar o Ministro Luiz Fux, presidente da Corte, que ratificou toda a ideia aqui sustentada no sentido de ser “evidente que uma pessoa de bem, diante da iminência de ser processada criminalmente, corre, paga e vai discutir depois a repetição do indébito para receber não se sabe quando através de precatório”.

Não há sombra de dúvidas quanto ao acerto do STF no julgamento da questão a exposta. Tal entendimento põe um ponto final no assunto, afastando uma desnecessária oneração das empresas, que se veriam obrigadas a efetuar o pagamento de créditos ainda não definitivamente constituídos, tão somente com o fito de evitarem que seus sócios e administradores virassem réus em ações penais.

Por fim, vale relembrar que, sendo o compliance o mandamento ético nos dia de hoje, com uma série de deveres de transparência no mundo corporativo, é evidente que o mero recebimento de uma denúncia seria suficiente para bombardear toda uma reputação e credibilidade de um contribuinte (e principalmente seus sócios), sendo certo, portanto, a conclusão de que a coerção penal não pode funcionar como pressão para adimplemento tributário sem o devido processo legal e ampla defesa, vez que este cenário desaguaria em aviltamento dos princípios constitucionais e do próprio Estado Democrático de Direito.

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